terça-feira, 8 de junho de 2010

Quase um repertório




Fazia alguns dias que voltara a procurar pelas sapatilhas. No primeiro dia, apenas contemplação: uma mistura de nostalgia, desejo, uma vontade inexplicável e a dor da culpa pelo abandono, mesmo diante de tantas promessas de mudança na agenda para os encontros diários.
Hoje, a sedução da dança alcançou os poros e os sonhos da menina. Ela não resistiu, calçou os pequenos sapatos rosa, quase em êxtase profundo amarrou as fitas, os dedos desacostumados com o gesso das pontas gemeram um tanto, ela fingiu não escutar, logo eles se calaram e cederam aos encantos do ensaio de um antigo solo, que pretendera ser pas-de-deux.
Depois de algumas valsinhas em adágio, ousou com um enchainement em ecarté com sissones, pas de bourée, pirouette, alcançando o chão no seu último fouetté. Os pés trairam os comandos, não estavam mais acostumados, agora andavam descalços. Ela não esqueceu: bailarinas nunca desistem, assim aprendera no ballet clássico. Podia ter perdido um pouco da disciplina, mas não perdera a teimosia e a insistência em conquistar "pas" tão difícil.
Não jogariam flores após um tour en l'air, pois nem um grand plié seria suficiente para amortecer a bruta queda. Por isso, ela se afastou dos palcos. Correu desvairada pelas coxias. Entrou no camarim. Olhou-se no espelho, transformou em tristeza os largos sorrisos desenhados em seu rosto. Arrancou os grampos da cabeça, desfazendo o coque. Subiu na ponta, e quase interpretando o desespero de Giselle, novamente caiu, talvez no segundo ato a bailarina volte, se a imaginação não misturar-se a realidade.

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