segunda-feira, 21 de junho de 2010

[Des]caso



O dia foi feito de nostalgia. Agora, com a morte de Saramago me lembrei de ti. Achei que nunca mais sentiria saudades do passado. Foi quando me lembrei da primeira vez que conversamos, quando os nossos preconceitos foram quebrados. Achavas que eu era um tanto fútil, por combinar cores, eu te achava um tanto desligada por usá-las sem se preocupar com a sincronia. 
Era, ainda, a primeira semana de Letras, ninguém se conhecia, os ânimos estavam exaltados e a vontade de aprender, decifrar e transformar o conhecimento era absurdamente alta.
Eram 7h da manhã quando cheguei à sala, nessa época ainda ligava para as horas. As luzes estavam apagadas, e tavas sentada na mesa do professor, lendo. Os óculos-cor-de-vinho-meio-intelectual estavam meio tortos e tu nem ligavas, as letras que vinham daquele livro pareciam te anestesiar. Tentei ao máximo diminuir o barulho para não te distrair. Sentei numa carteira ao fundo da sala e passei alguns minutos me deliciando com a tua leitura tão concentrada. A minha curiosidade natural sobrepôs o silêncio. Era preciso conhecer quem passaria mais tantos anos ao meu lado, descobrindo letras.

Intuitivamente descobriste minha presença e com o brilho nos olhos disseste:
- Saramago.
- Qual livro? Retruquei com uma voz altiva. Tinha orgulho em ter lido todos os livros do ousado autor português, alguns tinham merecido mais de duas leituras.
- Evangelho segundo Jesus cristo, conheces? Perguntaste meio interessada e, ao mesmo tempo, descrente.
Para revelar uma das minhas grandes características respondi:
- Ter lido todos os livros dele te responde alguma coisa?
Não acreditaste, precisaste me testar, foram mil perguntas sobre a minha opinião e as tantas obras do teu escritor favorito. Nasceu ali minha admiração, mas morreu também minha paz. Para conquistar minha confiança é preciso tantas e tantas artimanhas, entretanto, em poucos minutos de conversa compraste-a  Uma garota apaixonada pelas letras, só poderia colorir o meu mundo. Não foi diferente por longos meses. A nossa troca diária de informações sempre vinha rodeada de competição. Confesso tinha ciúmes por conhecer alguém que amava o ateu mais idolatrado da minha vida. E o veneravas mais. 
As cores se revoltaram contra ti, impediram que continuasses anarquizando com loucas misturas: não podias mais sair usando blusa amarela ovo, saia verde, sandália vermelha e flores no cabelo, roxas e laranjas. Agora, seria tudo preto e branco. Para ser luto: ocidental e oriental. José Saramago te abandonou e me enlouqueceu, mas antes publicou sua última prosa, a nossa história: onde me matas no final.



2 comentários:

Raiza disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raiza disse...

Que vontade de chorar..
Também morri um pouco no final... e que morte triste.
Ver tantas cores acabarem e serem transformadas em preto e branco, me fizeram perder um pouco da fantasia de amor a primeira vista.
Logo eu, você, nós... que somos, éramos... todo amor e cores... sempre as cores.