domingo, 16 de maio de 2010

Sem


Chegou de viagem, logo voltou ao trabalho, à faculdade e aos sonhos que deixara estacionados por algum tempo. Voltou com tanta vitalidade para continuar o ano, que conquistou novos amigos. Tinha novos projetos. Novas paixões e falava sem aflição numa nova partida, mas agora um pouco mais duradoura, ela moraria longe da cidade que amava para estudar e se aproximar de quem tanto gostava.
Antes de entrar no carro, tentou ligar para algumas pessoas, precisava escutar algumas vozes. Ninguém atendeu. Talvez por intuição, ela mandou mensagens. Ela voltava para casa, depois de um dia louco. Estava cansada o suficiente para arriscar sair do trabalho mesmo com tanta chuva. Ela nunca corria, sempre foi atenta, ainda mais com aquele toró.
Ligou o rádio. Noticiário. Mudou para a estação, que tocava uma música desconhecida, mas que a fez chora compulsivamente. Pensou em parar o carro, nem sabia mais para onde estava dirigindo, parecia ter passado da entrada de casa. Já estava quase em outro estado. Não parou. Não perguntou. Não usou GPS. Continuou seguindo, talvez encontrasse uma casa para se abrigar, no caminho.
Escureceu, o carro apitou confessando a exaustão e a quase falta de gasolina. Nenhum posto até ali. Provavelmente mais a frente. A chuva não parava e a visão estava quase completamente turva, pelas gotas caindo no parabrisas, o breu, o cansaço e as lágrimas. Ela freou bruscamente, enquanto tocava Autoramas, mas...
Ninguém mais poderia salvá-la. Sem morfina, sem glicose, sem pulso. Ela estava morta. E acontecera tão de repente.
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- Desculpa querido, não tive como avisar antes, teu celular estava desligado. E com tanta coisa acontecendo não pensei em entrar na internet. Eu sei que vai ser difícil conseguires um voo para Belém agora, na verdade, nem sei se vale a pena. Talvez, seja melhor ficares com aquela velha imagem dela sorrindo, do que vê-la deitada entre flores. Ela odiava flores fora de vasos, lembras? Provavelmente reclamaria desse cheiro enjoativo com mil espirros. Não consigo vê-la quieta, deitada sem nenhum edredom, sem nenhuma perna dobrada. Quieta e em silêncio. Acreditas que ela está em silêncio? Nunca mais vou poder ouvi-la reclamar,  o que ela fazia com tanta propriedade, sempre achando estar coberta de razão e nem sempre estava. Mas quem ousava avisá-la? Eu preferia me calar e escutá-la cantar desafinada, rir desesperada; quase sem fôlego, reclamar das minhas besteiras e dos meus medos. E agora, querido, como faremos para tê-la aqui novamente? Nem te contei, o carro dela foi encontrado no sul do Pará, provavelmente a saudade a fez voar. Ela era tão orgulhosa, odiava admitir que sentia saudades tuas. Talvez nem ela soubesse que estava quase insuportável viver tão longe e por isso o carro, quase como no conto de Saramago, a guiou para casa, mesmo que fosse tão longe de onde ela morava. Casa é onde a gente se sente bem, não? E há tanto tempo ela queria sair daqui. Mas tinham coisas que ela precisava resolver, antes de partir. E, agora, ficaram pela metade. Estou perdida. Não sei o que fazer com as coisas dela: os livros, as roupas, as cartas, o notebook, o celular..
Tudo tem o cheiro dela. Não sei se vou aguentar.
- Calma. Não tira nada do lugar. Vou aí me despedir. Preciso confessar à ela tantas coisas ainda, mesmo que não possa mais ouvi-las. Pego o voo das 7h.

Um comentário:

Adriana disse...

culpa da rotina? que não permitiu que ela fizesse o que gostava? senti q ela estava presa a uma realidade da qual ela própria sentia q nem fazia parte... como se fosse sistemático ela agir daquele modo =~~