quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cheiro de pêssego no consultório


Entrei meio desatenta na sala. Aproximei-me da mesa da atendente, que pediu os dados para fazer o cadastro, era a primeira vez. Falei meu nome completo. Pensei em dizer só o nome profissional, mas precisava do sobrenome oficial, aquele da carteira de identidade, que não gostava nada. Não por decepção, ou alguma coisa assim, apenas não gostava da falta de força que ele tinha, por ser tão comum. Pessoas e coisas comuns provocavam uma sensação de "eu-já-vi-isso-e-tenho-certeza-que-não-quero-para-mim". Mas na hora o nome da família não importou.


A mulher de óculos meio tortos e cabelo curtos e sem movimento, que aparentava uns 29 anos, chamou atenção. A moça não tinha seios, isso era perceptível, a blusa era branca e mesmo com decote parecia uma camisa masculina. Quer dizer, ela não tinha nenhuma aparência feminina, nenhum gesto delicado, nada de colorido, não usava nenhuma maquiagem ou saltos. Ainda sim era mulher. Não julguei, apenas analisei. O diferente provoca curiosidade, até assusta, mas a surpresa foi por não me irritar com aquela lerdeza da atendente. Só percebi naquela hora que, finalmente, estava com bom humor.

Depois do cadastro, sentei numa cadeira desconfortável, peguei uma revista para esperar pacientemente o novo médico me chamar. Revistas em consultórios são sempre desatualizadas. Encontrei uma Istoé de 2002. Fiz as contas e percebi que na época daquela edição só tinha 14 anos, mas lembro bem que foi o ano em que muitas coisas no Brasil mudaram. O Lula foi eleito, a Seleção brasileira foi pentacampeã na Copa do Mundo. Tantas coincidências com 2010? Talvez seja bom os canarinhos terem sido desclassificados antes das quartas de finais, assim ainda há uma esperança de mudanças no cenário eleitoral. Será que há?

Meu sobrenome soou. Só reconheci mesmo o sobrenome. O médico chamou meu nome de uma maneira que nunca tinha visto e nem posso contar, pois foi indecifrável. Já nem sinto incômodo, são poucas as pessoas que acertam meu nome na primeira vez que escutam, imagina apenas lendo. Tá! Acho que lendo era para ser mais fácil, nem vou falar desse analfabetismo. Levantei lentamente e disse em volta alta: JÚSSIA. Ele me olhou com uma cara surpresa. Pela minha altura? Pela voz alta falando forte? Ou pela ousadia e coragem de relatar meu verdadeiro nome? Achei que ele não tivesse compreendido, então ao andar em direção do consultório me aproximando dele soletrei: J-U-S-S-I-A = Jússia. Ele deu um sorriso charmoso, que fez eu prestar atenção nele pela primeira vez.

Os cabelos grisalhos misturavam-se aos negros fios lisos. Os olhos dele analisaram-me profundamente, como se tentasse decifrar alguma coisa. Suspeitaria ele dos meus inúmeros mistérios? Claro que não, eu não sou nada explícita. Provavelmente meus olhos estariam imóveis, eu estava realmente no mundo da lua, pensando em tudo aquilo. O médico chamou a minha atenção, perguntando o que me levou até lá. Nossa! Eu esqueci completamente o motivo. Não consegui lembrar nem qual a especialidade dele. Tentei ler o nome escrito nos diplomas e no bolso esquerdo do jaleco, no entanto havia esquecido meus óculos. Será que era isso? Não! Eu tinha um médico particilar para cuidar dos meus olhos. Novamente ele riu e tentou puxar assunto.

- Diferente o teu nome, menina. Jússia? Nunca ouvi antes.

Aquele menina soou tão sentimental, que provocou um frio na barriga momentâneo. Eu só podia estar surtando, nunca havia visto aquele homem na minha vida, ele tinha idade para ser meu pai, tio, ou algo assim. Que sentimento maluco era aquele? Ele me fez uma pergunta, deveria responder. Claro que deveria. Então dei um sorriso de satisfação por explicar o motivo do meu lindo nome. Deveria falar? Nhá! Falei.

- A explicação pode surpreender mais que o nome. Quebrei o silêncio.

- Duvido! Ele disse esperando ansioso pela resposta.

- Meu pai sempre foi de extrema esquerda. Se trocares o J pelo R fica Rússia e o nome da minha irmã é em homenagem a mulher do Gorbachev: Raísa. Surpreso? Eu avisei!

- Que interessante, garota.

A voz provocava uma sensação tão boa, apesar dos vocativos infantis eu me sentia feminina, menos criança. Nessa hora, lembrei do motivo que fez eu agendar aquela consulta com um novo médico. Tive uma reação alérgica aos exagerados sabonetes que usei para tirar o cheiro do passado que tanto vinha me incomodando. Parece que eu ainda não estava pronta para expelir. Precisava guardar, ainda, no inconsciente para gradativamente superar uma perda incompreensiva, mas como sempre fui teimosa e como gosto de ter o comando sobre as minhas atitudes e os meus sentimentos obriguei meu consciente a perceber a realidade. Santo remédio para o pensamento, só que o corpo, agora, reclamava e reagia.

Foi apenas uma receita com doses de vitamina para fortalecimento e estava liberada. Eu não queria sair dali, fazia algum tempo que não sentia aquele cheiro de pêssego, que sempre vem quando meu cérebro comanda meu corpo a produzir mais ocitocina. Hormônio do amor. Mas já? Fui obrigada a ignorar o cheiro e levantar da cadeira para sair dali correndo. Me despedi, já colocando a mão na maçaneta.

Antes que pudesse abrir a porta, ele perguntou:

- Qual a sua profissão?

Sem entender bem, disse:

- Jornalista. Porquê?

Com um sorriso revelador afirmou:

- Tens o mistério da verdade, criança.

2 comentários:

Alana Fontenelle disse...

è sempre tão bom ler teus textos.
Onde se acha um médico desse? Tá no guia médico da UNIMED? shaushaushuas

Franciele Valadão disse...

Nossa, que texto mais liindo.